I- O fosso
Há dias em que o engenho interior dispara a fervelhar o vazio. Aquele vazio que virá a ter forma umas horas depois. Uma forma tão definida como aquilo que sabemos dela.
Hoje, para além das coisas que se passeiam e andam a dançar comigo há uns tempos, pensei no fosso. É uma palavra estranha o fosso. Não fosse a fossa ser o seu feminino. Mas naturalmente não é essa a razão da inquietação.
O fosso é uma daquelas recorrências que me vejo a gaguejar de quando em quando. E por norma sobre os mesmos assuntos. Como que a pedir paz ao Senhor, que deixe de me atormentar o cógito com insolências utópicas, tendencialmente de esquerda, com uma preocupação desmesurada pelos outros que nem por eles fazem. Não fossem as bandeiras na altura do futebol e o que seria das eleições... Palermice. É sempre altura de futebol, que mais não seja o clube local, regional, ou lá o que é... mas isto iria desviar a nossa atenção para assuntos que por agora podem descansar, ou ter vida própria fora deste fôlego.
O fosso é, como disse, uma recorrência na minha cabeça. Preocupa-me o crescimento exponencial do fosso entre a Arte, no sentido lato, e o público.
Percebi isso com o livro "A desumanização da arte" de Ortega y Gasset. A leitura já fez uns anos, mas a frenia(1) aqui está, como uma úlcera que atormenta por ser atormentada.
Para sintetizar um pouco as coisas, é referido no livro que a reprodutibilidade técnica com origem na revolução industrial, veio a massificar a produção da imagem a baixo custo. Em consequência disso, a criação artística foi evoluindo, tomando o seu curso natural, e o público em geral, ficou-se pelas reproduções. Para confirmar isto, basta entrar em qualquer restaurante com preços acolhedores, para perceber que também as réplicas de má impressão e de mau gosto, penduradas na parede, por vezes secular, confirmam as palavras escritas pelo autor.
Inquieta-me que o mesmo tenha acontecido com a música e imagino que com tudo o resto. Pior, por um lado veio a calhar, visto que o espaço de reflexão sobre estes assuntos tomou alguma autonomia. Não é que já não a tivesse, mas estava naturalmente mais exposta à opinião geral.
A reprodução foi feita em certas imagens, mas não no domínio geral da imagem. Esses outros, tiveram assim, mais espaço e tempo para desenvolver ideias. Seria pelo menos o que eu faria. Mas a verdade é que a partir dessa altura, o público deixou de sentir a necessidade de acompanhar a produção artística com a mesma regularidade, e a política do escândalo foi-se tornando cada vez mais evidente. Sem esse acompanhamento, parece-me natural que o surgimento de novas teorias em torno da arte fossem entrando no plano do descabido, a planar as ideias e o espírito num ar cada vez mais rarefeito. E a verdade é que para muitos, Picasso, absolutamente incompreendido, ainda é um artista "jovem de última geração". Como todas as coisas que podemos ler numa revista qualquer de moda. Dali, é mais adorado pela performance, que me parece de qualidade, que pela obra pictórica em si, sujeita a uma quantidade avassaladora de reproduções, muitas vezes com o cunho do pintor.
É caricato pensar que para muitos, o pintor é um personagem de boina azul, françês, presumo, com bigode à Dali e a pintar à Pollock, contra uma pequena tela num cavalete frágil, desses que se podem adquirir nas ditas grandes superfícies.
O fosso vai sendo cada vez maior, assim como a quantidade das reproduções, assim como a quantidade de informação com origem desconhecida, assim como a falta de instrução, assim como o poder das minorias nos grandes partidos.
Eu gosto de viajar e ver os originais, gosto de filtrar a informação que me chega, gosto de aprender e gosto de ser livre dentro da medida do possível.
(1) fenda (lat.)