sexta-feira, novembro 03, 2006

Devem haver milhões de textos a exprimir a sensação de não ter nada para dizer, e de ainda assim, continuamos com a sensação de que algo deve ser dito. Principalmente depois de Beckett, incontornável no que diz respeito a este assunto.
Não ter nada para dizer equivale a não ter rigorosamente nada para dizer, ou, a ter muita coisa dentro de si para ser dita. O fantasma eminente da folha em branco por preencher é uma constante por sabermos que atrás de nós há uma história. Que actua como uma raiz repleta de grandes temas, de grandes obras sobre temas grandiosos, cujo escape, para um jovem escritor, poderá ser sob a orientação de Rilke, a escrita sobre as pequenas coisas, também elas detentoras de poesia em potência, tão grandiosa como o amor, a guerra, ou outro grande tema. Faz sentido, uma vez que está em nós a capacidade de captar e transmitir a poesia que emana das coisas.
Em consequência, o facto de não ter nada para dizer abre uma espécie de suspensão no tempo e no corpo, para que algo venha a ser dito mais tarde. Esta suspensão parece-me essencial para que possamos encontrar o equilíbrio necessário para escrever, para esboçar em palavras a vida de um raciocínio e a lógica de vida que se deixa pousar ao detalhe do registo.
Não ter nada para dizer é uma dobra no discurso que ainda vai ser dito, ou que já está a ser dito enquanto não temos nada para dizer, porque acompanha a forma de estar do corpo, em permanente comunicação, mesmo que parado sem estar aparentemente a fazer nada.
As palavras acabam por beneficiar da fluência do discurso, uma vez que fazer nada, é estar a fazer alguma coisa, que é fazer nada. Não ter nada para dizer, acaba por ser uma forma de dizer qualquer coisa que ainda não encontrou forma para ser dita. Que partilha um silêncio que faz ponte entre dois blocos de som. Um silêncio que só faz sentido por se incluir numa estrutura composta por aquilo a que chamamos som.
Parece-me que a vontade de não ter nada para dizer é sintoma, muitas vezes, de algo que está a ser cogitado para que se possa transmitir com maior transparência.
Tal como Beckett não temos nada para dizer uns aos outros, mas acabamos sempre a falar e a não fechar a boca. Porque temos de falar. Porque temos a necessidade de afirmar, ou perguntar algo que estamos a sentir, ao ponto de se tornar quase uma obrigação, questionável, mas uma obrigação para connosco, de esclarecer e de sermos esclarecidos.
Esta é, sem dúvida, uma estranha forma de comunicação.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

De comunicação e de ser comunicável...é pena que pouca gente ou melhor, que não haja mais gente a querer assim comunicar. Gostei muito da reflexão que não chega ao ponto crítico a que eu, por momentos, pensei que iria chegar:ao bloqueio de comunicação escrita. Ainda bem que tens o discernimento e a frieza de raciocínio necessários para reflectir e perceber como o não ter nada para dizer encerra em si mesmo a espiral de se ter mil uma coisas para serem ditas...ainda bem que o escreves assim...
Gostei muito, principalmente porque venho de um fim de semana de escrita intensa e sob pressão, orientada e orientadora, terapêutica e acima de tudo profícua, soube-me muito bem e o teu texto foi a cereja no cimo do bolo.Obrigada.

05 novembro, 2006  

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