quarta-feira, outubro 25, 2006

Estou num café de bairro, daqueles simples, onde a verdade das coisas se vive e não vai além daquilo que o ego acaba por tomar. A verdade está nas pessoas e não naquilo em que acreditam, ainda que as convicções possam determinar qualquer coisa nas suas vidas.
Por aqui, as conversas que não vão para lá do banal, denunciam o que de mais banal e estúpido tem a nossa vida. De uma maneira ou de outra, a banalidade em cada um de nós, costuma revelar-se no grau de estupidez que temos de deixar sair, soltar, libertar do corpo, como que a expurgar o que de menos interessante encontramos no espelho. Porque a vida é difícil e na verdade, não há nada como um aditivo para a tornar mais interessante. O aditivo é indefinido como tudo o que a vida nos proporciona. Eu escolhi a arte...
Ao ouvir estes homens, porque as suas mulheres têm mais que fazer, penso na monotonia das suas vidas e remeto isso à minha. Como algo que não consigo evitar mas que está presente. Sempre presente. Indissociável ao corpo que me ofereceram, reflexo do local onde vivo e penso as coisas do dia-a-dia.O meio é pobre e assumo que só aqui estou por estar a escrever sobre isso. Vou bebendo a minha bebida. Vou vendo as bebidas dos outros surgir em catadupa. Vou bocejando a minha apatia e ouvindo o que as mulheres dos outros já não têm paciência para ouvir, provavelmente por acreditarem numa coisa maior que um dia os uniu e lhes ofereceu o fruto que um dia a vida há-de colher.
O som das máquinas, do vidro das garrafas no vidro do balcão, têm um ritmo indefinido como tudo o que nos espera. As conversas atropelam-se no ar, as páginas de um jornal fácil vão-se passando sem que os olhos as decifrem ao som de uma conversa ainda menos interessante. Volto a bocejar a apatia da vida. Penso que podia estar a fazer por mim noutro sítio qualquer, noutro sítio qualquer da Europa, onde a densidade populacional é maior, onde a probabilidade de encontrar gente motivada e com menos necessidade de expurgar a estupidez se torna igualmente maior.
Hoje penso nisto, mas não faço nada do que devia estar a fazer. Rigorosamente nada. Porque a palavra que tenho não chega para desembrulhar esta prenda de fim-de-semana. Que ao menos podia estar escrita com mais argúcia que um bocejo a lamentar o facto de aqui estar, num simples café de bairro onde nada mudou. Confirmo, nada mudou, porque hoje não estou para mudar coisa nenhuma. Vou continuar a bocejar e a ver o entusiasmo daquilo que a vida não é, mas que denuncia ser.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Passo por aqui muitas vezes. Estaciono o carro e fico a ver uma árvore, obcecado pela forma, pelo recorte, pela textura. A luz vai mudando com o passar do tempo, e esta pequena árvore, vai tomando o espaço com o seu candeeiro de rua, que a ilumina de a alto a baixo, mostrando que o vento está presente nas pequenas luminescências que ondulam como o brilho da água do mar.
A chuva chegou e vai-lhe devolvendo o verde e a jovialidade que ainda tem. Com a mesma naturalidade com que mudamos de pele. Está assente em frente a uma biblioteca de construção contemporânea, onde os livros, mesmo os mais antigos, são devolvidos ao público com uma cara nova, depois que a arrumação por área de interesse, por cronologia, por tema, por autor, foi disposta numa estante com "ar" a condizer, e assim, esperam eles, que a leitura se torne um pouco mais apelativa.
Os mais novos vão brincando do lado de fora, indiferentes ao estado do tempo, com aquela inocência que oculta o risco de uma virose que outrora já matou. E quem não fez isso em criança? Ou não quis fazer? Belos tempos, esses em que a saúde transbordava e nos dávamos ao luxo de poder apanhar uma valente molha, enquanto corríamos desmedidamente.
A luz ía-se fazendo passar para onde faz falta, e a noite ía chegando devagarinho, sem impedir que a genica de um corpo a esticar, terminasse antes do reconfortante chá quente com torradas a acompanhar depois do banho tomado.
Imóvel mas sem constrangimento, continua esta singularidade da natureza, que afinal se agita com o passar do vento, e que duvido que queira saber das alegrias ou das tristezas das pessoas que são verdadeiramente alheias ao seu grau de sublime.
É reconfortante vir olhá-la para aqui. É reconfortante saber que não lhe devo nada nem ela a mim. Sabemos que sem mim continuará aqui, a ondular com o vento. Eu que sem ela terei de ir buscar reconforto a outro lado, quem sabe, dentro da biblioteca a procurar livros dentro de uma estante bonita e a condizer, sabendo que dos dois alguém vai ter de avançar um gesto, e o mais provável é ser eu, pelo simples facto de gostar de olhar para ti, no silêncio do que rodeia, ao som do que nos liga.
Amanhã, com aprovação ou não, vou voltar aqui.

segunda-feira, outubro 16, 2006

I- O fosso
Há dias em que o engenho interior dispara a fervelhar o vazio. Aquele vazio que virá a ter forma umas horas depois. Uma forma tão definida como aquilo que sabemos dela.
Hoje, para além das coisas que se passeiam e andam a dançar comigo há uns tempos, pensei no fosso. É uma palavra estranha o fosso. Não fosse a fossa ser o seu feminino. Mas naturalmente não é essa a razão da inquietação.
O fosso é uma daquelas recorrências que me vejo a gaguejar de quando em quando. E por norma sobre os mesmos assuntos. Como que a pedir paz ao Senhor, que deixe de me atormentar o cógito com insolências utópicas, tendencialmente de esquerda, com uma preocupação desmesurada pelos outros que nem por eles fazem. Não fossem as bandeiras na altura do futebol e o que seria das eleições... Palermice. É sempre altura de futebol, que mais não seja o clube local, regional, ou lá o que é... mas isto iria desviar a nossa atenção para assuntos que por agora podem descansar, ou ter vida própria fora deste fôlego.
O fosso é, como disse, uma recorrência na minha cabeça. Preocupa-me o crescimento exponencial do fosso entre a Arte, no sentido lato, e o público.
Percebi isso com o livro "A desumanização da arte" de Ortega y Gasset. A leitura já fez uns anos, mas a frenia(1) aqui está, como uma úlcera que atormenta por ser atormentada.
Para sintetizar um pouco as coisas, é referido no livro que a reprodutibilidade técnica com origem na revolução industrial, veio a massificar a produção da imagem a baixo custo. Em consequência disso, a criação artística foi evoluindo, tomando o seu curso natural, e o público em geral, ficou-se pelas reproduções. Para confirmar isto, basta entrar em qualquer restaurante com preços acolhedores, para perceber que também as réplicas de má impressão e de mau gosto, penduradas na parede, por vezes secular, confirmam as palavras escritas pelo autor.
Inquieta-me que o mesmo tenha acontecido com a música e imagino que com tudo o resto. Pior, por um lado veio a calhar, visto que o espaço de reflexão sobre estes assuntos tomou alguma autonomia. Não é que já não a tivesse, mas estava naturalmente mais exposta à opinião geral.
A reprodução foi feita em certas imagens, mas não no domínio geral da imagem. Esses outros, tiveram assim, mais espaço e tempo para desenvolver ideias. Seria pelo menos o que eu faria. Mas a verdade é que a partir dessa altura, o público deixou de sentir a necessidade de acompanhar a produção artística com a mesma regularidade, e a política do escândalo foi-se tornando cada vez mais evidente. Sem esse acompanhamento, parece-me natural que o surgimento de novas teorias em torno da arte fossem entrando no plano do descabido, a planar as ideias e o espírito num ar cada vez mais rarefeito. E a verdade é que para muitos, Picasso, absolutamente incompreendido, ainda é um artista "jovem de última geração". Como todas as coisas que podemos ler numa revista qualquer de moda. Dali, é mais adorado pela performance, que me parece de qualidade, que pela obra pictórica em si, sujeita a uma quantidade avassaladora de reproduções, muitas vezes com o cunho do pintor.
É caricato pensar que para muitos, o pintor é um personagem de boina azul, françês, presumo, com bigode à Dali e a pintar à Pollock, contra uma pequena tela num cavalete frágil, desses que se podem adquirir nas ditas grandes superfícies.
O fosso vai sendo cada vez maior, assim como a quantidade das reproduções, assim como a quantidade de informação com origem desconhecida, assim como a falta de instrução, assim como o poder das minorias nos grandes partidos.
Eu gosto de viajar e ver os originais, gosto de filtrar a informação que me chega, gosto de aprender e gosto de ser livre dentro da medida do possível.
(1) fenda (lat.)

sábado, outubro 07, 2006

Parto para cima. De frente a uma pintura. Uma pintura discreta. Daquelas que gostava de ter em casa. Como se estivesse escondida. Autista. Com árvores de troncos castanhos. Quase negros, a suportar a coroa, numa quantidade substancial do azul que as folhas foram embebidas. No fundo, um deserto vermelho, a escorrer de quente, a suar pequenos sulcos brancos que revelam a tela que está por baixo. Nada se dilui nesta pintura exceptuando o fundo. Que o faz convinientemente. Há uma casa de madeira, de duas janelas e uma suposta entrada que não se vê, mas por onde podemos prever o ritmo de acesso a este pequeno complexo de frágil construcção. Do lado de fora, numa varanda que ladeia toda a cabana, passeia um homem nu com uma criança ao colo, também ela nua. A cabana por sua vez, está elevada por alguns pilares presumindo que a defendem das cheias. Troncos de madeira com o castanhos das árvores. Largos. Ao dobrar da esquina encontramos uma mulher. Nua. Com ar desfeito. Sentada na varanda a abraçar uma das pernas. A outra, a pendular a depressão que lhe infecta a cabeça. O verbo ser. O verbo estar. Iluminada no seu tom de pele, que a cobre com vagar de uma extremidade à outra, para que os dias se demorem. Não passem sem ficar um pouco mais de tempo. Depois de o ver a ele. Só depois de o ver com a criança é que percebi que seria eventualmente a mãe. Uma mãe presente que se ausenta do corpo e do dever do calor da carne. Tudo o resto é verde e ocre. Mas verde. Um verde jovial que cobra ao sol a evidência de um futuro próximo. Aquele verde pleno no qual as flores escolhem brotar. No meio das flores aparece um pequeno lobo. Espectante. A cambalear a inocência da vida. De orelhas espetadas e de ar atento a um pai que segura o filho nos braços. Espectante. Sua mãe, uma loba adulta e experiente, boa caçadora com certeza, sem uma noção clara daquilo que pode significar o fim-de-semana, olha assanhada o pequeno lobo. Pronta a atacar se esse fôr o caso. Reagindo através daquilo que a natureza lhe deu de mais importante. Que foi o ser. O estar. O perpetuar da sua presença nas gerações mais novas. Absolutamente integradas no meio que as envolve e que delas necessita. Sabendo à sua maneira, que para ter vergonha da origem estamos cá nós. Na cidade. Alucinados pela suposta modernidade das coisas que nos bafeja a mentira de um corpo não biológico. Numa festa coroada de novas drogas que nos passeiam a cabeça longe da verdade do tempo, e dos pequenos suspiros do quanto custa ganhar o dia. Curiosamente a ler um autor moderno como Baudelaire, e a pensar na curiosidade da maquilhagem na cara de quem a usa.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Sempre foi minha ambição saber ler. Um dia vir a ler como ninguém. Essa era inequívocamente a premissa de um desconjuntado adolescente. Sem acne, imberbe, sem nada a revelar, rigorosamente nada a revelar. Talvez nem isso tenha mudado. Ainda que revele um crecimento visível se remontarmos a esses dias, pois que o corpo se expandiu para todos os lados. Incontrolável. Mais perto de tudo, curiosamente. Até que o mundo encolheu e me tornei gigante. Um gigante dócil, mas um dócil gigante. Continuei a ler. Continuei sem reler. Confesso que não releio, pelo menos livros inteiros, e o mundo voltou a cresçer à minha volta. Voltou a expandir-se. Cada vez maior à minha volta. Até que percebi que sempre li como ninguém. Por ser singular. Desculpei-me a evidência; tudo tem um tempo para se revelar não é?! Pois comigo assim foi, preso na rede e a tentar perceber onde sou fugitivo... trabalho que se revelou para uma vida inteira. Assim como ler. Assim como escrever.