Parto para cima. De frente a uma pintura. Uma pintura discreta. Daquelas que gostava de ter em casa. Como se estivesse escondida. Autista. Com árvores de troncos castanhos. Quase negros, a suportar a coroa, numa quantidade substancial do azul que as folhas foram embebidas. No fundo, um deserto vermelho, a escorrer de quente, a suar pequenos sulcos brancos que revelam a tela que está por baixo. Nada se dilui nesta pintura exceptuando o fundo. Que o faz convinientemente. Há uma casa de madeira, de duas janelas e uma suposta entrada que não se vê, mas por onde podemos prever o ritmo de acesso a este pequeno complexo de frágil construcção. Do lado de fora, numa varanda que ladeia toda a cabana, passeia um homem nu com uma criança ao colo, também ela nua. A cabana por sua vez, está elevada por alguns pilares presumindo que a defendem das cheias. Troncos de madeira com o castanhos das árvores. Largos. Ao dobrar da esquina encontramos uma mulher. Nua. Com ar desfeito. Sentada na varanda a abraçar uma das pernas. A outra, a pendular a depressão que lhe infecta a cabeça. O verbo ser. O verbo estar. Iluminada no seu tom de pele, que a cobre com vagar de uma extremidade à outra, para que os dias se demorem. Não passem sem ficar um pouco mais de tempo. Depois de o ver a ele. Só depois de o ver com a criança é que percebi que seria eventualmente a mãe. Uma mãe presente que se ausenta do corpo e do dever do calor da carne. Tudo o resto é verde e ocre. Mas verde. Um verde jovial que cobra ao sol a evidência de um futuro próximo. Aquele verde pleno no qual as flores escolhem brotar. No meio das flores aparece um pequeno lobo. Espectante. A cambalear a inocência da vida. De orelhas espetadas e de ar atento a um pai que segura o filho nos braços. Espectante. Sua mãe, uma loba adulta e experiente, boa caçadora com certeza, sem uma noção clara daquilo que pode significar o fim-de-semana, olha assanhada o pequeno lobo. Pronta a atacar se esse fôr o caso. Reagindo através daquilo que a natureza lhe deu de mais importante. Que foi o ser. O estar. O perpetuar da sua presença nas gerações mais novas. Absolutamente integradas no meio que as envolve e que delas necessita. Sabendo à sua maneira, que para ter vergonha da origem estamos cá nós. Na cidade. Alucinados pela suposta modernidade das coisas que nos bafeja a mentira de um corpo não biológico. Numa festa coroada de novas drogas que nos passeiam a cabeça longe da verdade do tempo, e dos pequenos suspiros do quanto custa ganhar o dia. Curiosamente a ler um autor moderno como Baudelaire, e a pensar na curiosidade da maquilhagem na cara de quem a usa.
2 Comments:
Não sei como comentar ou bem comentar este texto por uma razão: ele tem muitas frases que gostei de ler e que gostava de salientar mas que é difícil de fazer em COPY PASTE porque não tens a janela de comentários em POP UP o que dificulta muito a vida ao pesssoal que gosta de comentar textos...
Ainda assim digo-te que está aqui um belo exemplar de um belo texto. Boa escrita!
Fenomenal este texto. Todo.
"Alucinados pela suposta modernidade das coisas que nos bafeja a mentira de um corpo não biológico. Numa festa coroada de novas drogas que nos passeiam a cabeça longe da verdade do tempo, e dos pequenos suspiros do quanto custa ganhar o dia."
Soberbo. E de uma profundidade assustadoramente real. Parabéns!!!!
Como o próprio Baudelaire disse/ escreveu uma vez: "Manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória"
Continue a enfeitiçar. Bjks.
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