sábado, outubro 07, 2006

Parto para cima. De frente a uma pintura. Uma pintura discreta. Daquelas que gostava de ter em casa. Como se estivesse escondida. Autista. Com árvores de troncos castanhos. Quase negros, a suportar a coroa, numa quantidade substancial do azul que as folhas foram embebidas. No fundo, um deserto vermelho, a escorrer de quente, a suar pequenos sulcos brancos que revelam a tela que está por baixo. Nada se dilui nesta pintura exceptuando o fundo. Que o faz convinientemente. Há uma casa de madeira, de duas janelas e uma suposta entrada que não se vê, mas por onde podemos prever o ritmo de acesso a este pequeno complexo de frágil construcção. Do lado de fora, numa varanda que ladeia toda a cabana, passeia um homem nu com uma criança ao colo, também ela nua. A cabana por sua vez, está elevada por alguns pilares presumindo que a defendem das cheias. Troncos de madeira com o castanhos das árvores. Largos. Ao dobrar da esquina encontramos uma mulher. Nua. Com ar desfeito. Sentada na varanda a abraçar uma das pernas. A outra, a pendular a depressão que lhe infecta a cabeça. O verbo ser. O verbo estar. Iluminada no seu tom de pele, que a cobre com vagar de uma extremidade à outra, para que os dias se demorem. Não passem sem ficar um pouco mais de tempo. Depois de o ver a ele. Só depois de o ver com a criança é que percebi que seria eventualmente a mãe. Uma mãe presente que se ausenta do corpo e do dever do calor da carne. Tudo o resto é verde e ocre. Mas verde. Um verde jovial que cobra ao sol a evidência de um futuro próximo. Aquele verde pleno no qual as flores escolhem brotar. No meio das flores aparece um pequeno lobo. Espectante. A cambalear a inocência da vida. De orelhas espetadas e de ar atento a um pai que segura o filho nos braços. Espectante. Sua mãe, uma loba adulta e experiente, boa caçadora com certeza, sem uma noção clara daquilo que pode significar o fim-de-semana, olha assanhada o pequeno lobo. Pronta a atacar se esse fôr o caso. Reagindo através daquilo que a natureza lhe deu de mais importante. Que foi o ser. O estar. O perpetuar da sua presença nas gerações mais novas. Absolutamente integradas no meio que as envolve e que delas necessita. Sabendo à sua maneira, que para ter vergonha da origem estamos cá nós. Na cidade. Alucinados pela suposta modernidade das coisas que nos bafeja a mentira de um corpo não biológico. Numa festa coroada de novas drogas que nos passeiam a cabeça longe da verdade do tempo, e dos pequenos suspiros do quanto custa ganhar o dia. Curiosamente a ler um autor moderno como Baudelaire, e a pensar na curiosidade da maquilhagem na cara de quem a usa.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não sei como comentar ou bem comentar este texto por uma razão: ele tem muitas frases que gostei de ler e que gostava de salientar mas que é difícil de fazer em COPY PASTE porque não tens a janela de comentários em POP UP o que dificulta muito a vida ao pesssoal que gosta de comentar textos...
Ainda assim digo-te que está aqui um belo exemplar de um belo texto. Boa escrita!

13 outubro, 2006  
Blogger Noa said...

Fenomenal este texto. Todo.

"Alucinados pela suposta modernidade das coisas que nos bafeja a mentira de um corpo não biológico. Numa festa coroada de novas drogas que nos passeiam a cabeça longe da verdade do tempo, e dos pequenos suspiros do quanto custa ganhar o dia."

Soberbo. E de uma profundidade assustadoramente real. Parabéns!!!!

Como o próprio Baudelaire disse/ escreveu uma vez: "Manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória"

Continue a enfeitiçar. Bjks.

16 outubro, 2006  

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