quinta-feira, novembro 20, 2008

Quando tudo cai, cai sem escada de emergência.
Lembro-me de ser mais novo e não ter qualquer ideia, conceito, aquilo que fosse, sobre a possibilidade de umas escadas de emergência.
A simplicidade do Mundo, sem obviar, não tinha qualquer requisito emergente. Não tinha emergências para além das fisiológicas.
Desde tenra idade a qualidade do emergente sempre foi um mistério.
Por outro lado, sem saber, vivi sempre como todos os outros num Mundo emergente. Onde a constante é a transformação. Onde as palavras não me saíam bem e eu não sabia porquê. Facto que continuo a desconhecer.
Onde a urgência de gratitude se impunha soberana numa relação aberta com o social.
Tenho imenso a agradecer a todos. Sinto que sou previlegiado pelos amigos que tenho. Fui moldado para ser melhor, cada vez melhor e para melhor amigo ser.
Os meus pais são o que nunca vou conseguir ser. Sei-o com a simplicidade de tudo o que cai. As palavras continuam a não sair. A minha gaguês, é um defeito que mergulha nos defeitos de todos nós e o inverso também é possível. Os muros costumam cair no defeito e é para isso e por isso que a compreensão urge.
Quando se esconde um defeito ergue-se um muro.
Quando se ergue um muro constroi-se uma escada de emergência.
Afinal sempre lá estiveram as escadas. Fui eu quem nunca as consegui ver.
Estou rodeado de árvores num final de tarde e as folhas só agora começaram a cair.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

As ondas devolvem-nos as mentiras
uma
a
uma
uma
por ca
da
uma
Embalando
Lentamente
Um suspiro salário
Que nos é pertença
A lamberem-se
Como felinos
No ponto onde os pés assentam
Afogando a tristeza
Na melancolia do talento
Os sons
sucedem-se As cores
sucedem-se
O olhar parelisa
O corpo ausenta
-se
Na incomensurável medida das partículas
No vazão empilhado
Os prédios caem na direcção do céu
E os carros reflectem os corpos como são,
Torcidos.
Diluídos.
Encaixotados.
As copas seguram o azul por pontos.
Nada mais para além disto parece real.
O Universo guarda os mesmo gestos desde sempre
A sabedoria contida da magia
As folhas secas estão de nojo
Sempre que um peixe quebra na areia
Tentei como Deus sabe
Mas nunca ouvi bicho algum fazer contas de cabeça.

domingo, outubro 21, 2007

Roma
Desce em quase tudo
Vai deixar tudo cair
Desce em todo o Mundo
Roma vai voltar a arder!
Vendes um sorriso
Compras um quarto do céu
Mas a verdade é escrita
No corpo dos teus irmãos...
O cheiro nessas mãos!
Sobes abaixo do céu
Deixaste cair o chão
Afundaste o ego
No lodo das tuas mãos...
O cheiro nessas mãos!
Teu vinho é veneno!
Sal na terra!
Medo no ventre!
Insistir
No
Zero
Insistes no zero
Começas tudo de novo
Se o retorno é zero
Nem mesmo isso te faz desistir
Insistes no zero
(Dar-te-á amanhã)
Sonhas o primeiro beijo
(Motivo para insistir)
Dar-te-á amanhã
(Sonhas o primeiro beijo)
Motivo para insistir
(Insistes no zero)
O chão denso que agora é mar
Virou Oceano por baixo dos pés
Sem saber o melhor...
Se à deriva
Se em mau porto
Chão
Desço ao chão
Chão
Com a minha cara no chão
Chão
Levanta os olhos do
C
H
Ã
O

sexta-feira, setembro 21, 2007

Livra
Que a dor
Arde mais que o branco
Rasgou Aquiles
E aqueles
Excessos
À caixa de madeira
Abre sulcos
Onde o sangue desvia
Inimaginado
O pranto
E o talco sobre a face
E onde se esconde
Lá estará em peças
Satélites da respiração
Da beleza e da pegada
Onde se guiam os vinte
Dígitos
Que se ajudem!

sexta-feira, abril 13, 2007

Abre-se a porta devagar, a suar o cheiro de tudo o que ficou para trás, onde a oleosidade das coisas se desvaneceu e tudo começa a condizer com o metal, em ouro velho, onde tudo é velho à nosso volta e nós mais velhos ainda. O corpo treme a contorção dos ossos, dos dentes dormentes e trilhados a sentir apenas um formigueiro febril.
Os olhos vão pesando até deambularem pelas órbitas como se não tivessem rumo, e a temperatura das pontas dos dedos, geladas como o gelo do gelo e o gelo do gelo das pontas dos meus dedos.
A porta aberta e todos a olhar, e de todos, reconheço um ou outro que me dizem ser família. Todos com ar de ainda é cedo e a minha vertigem, a minha febre na minha vertigem, aparentemente com ar de ainda é cedo. E o sulco na cara por onde costuma entrar o ar. E a água que parece não ter fim. Bem usada, seria usá-la para envenenar uma aguarela. Podia diluir o pigmento nesta goma virulenta. Apodrecer as cores. Partir um corpo em rhíza como a figura de um craquelet!
O peso dos olhos, do sono, da liberdade cansada do cansaço do corpo. Todos eles com ar de um amanhã que ainda é cedo. Eu a beijar as mãos daqueles outros que também fui no passado. Todos nós num só a escrever que ainda é cedo, e a devolver ao tempo o movimento que lhe pertence. A luz do sol sobrepõe sombras. Sombras nas sombras. As sombras das sombras.
Fechei a porta porque aparentemente ainda é cedo.
O comboio que não vem.
O chão abateu na forma dos sapatos. Espero o final da semana com estearina derretida nas mãos, sem perfume, a cobrir a pele como pele na pele.
Tchin com tchin o barulho da máquina que me vem buscar… tchin com tchin
Todos a bordo… Não. Falto. Eu.
Uaaap é Napoleão que lá vem numa crina branca, como a acidez fétida de uma doença ao tentar passar-se por algodão doce.
Uaaap que lá vem o Corso!!!
As fábulas de criança em tom de crítica e o mercado a instigar o nado-morto. Tudo morto. As árvores livres desde que são árvores. As flores livres desde que são flores. Nós livres, desde que arrancamos árvores e colhemos flores.
A verdade. O olhar da presa. O olhar do predador.
Uaaap que lá vem…

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O nosssss querido e antigo sssssatélite mostrasssss numa espécie de contraponto horizontal.
O que tem de mexersssss mexesssss, movesssss, olhando tudo o que o não faz. Deixando rasto e arrastando toda a água que tem dentro de sssss.
Ali o dia não nasce. Mas também não anoitece. Não chove mas também não raia o sol do meio-dia. Não faz frio porque o calor não queima na fracção de tempo em que o tempo parou. Não ssssss tem nada para fazer porque fazer implica o tempo moversssss. Não há História porque não há passado nem futuro. O presente, que é o tempo em que se assina, existe num tempo sublime e único. Faz estenderssssse no que não tem maneira de ssssse mover. A cor das coisas não vai mudar porque em nada as coisas poderiam mudar ausentes do tempo.
E nós, todos nós, parados numa ataraxia geral. Não dispomos de mais nada alem de uma voz interior, num tom grave e alheio ao próprio corpo, que sssssangra os olhos por não ter como fazê-los piscar.
E a morte deixa de ssssser conceito para deixar de existir numa vida que sssssopra a dança que o ssssser implica. E a nudez dos corpos é fria como a do metal, porque aprendeu a estar como todas as coisas que ainda não nos ensinaram a estar cá para ssssser.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

De tarde, ao lado de um gradeamento verde que deixa transparecer o interior, a luz amena sobre a frescura da relva que se estende a recortar campos de ténis, e um edifício polidesportivo, desses iguais aos que há por todo o lado, a fazer lembrar a farda de um estudante num colégio estrangeiro, onde a igualdade do traje pretende dissimular hierarquias que acabam por não se desvanecer assim tão facilmente, ainda que o princípio seja de bom tom.
Passou ao lado deste gradeamento verde, do lado de lá da estrada, ladeada por um passeio em calçada prestes a saltar com a chuva do Inverno, de fato cinzento a cambalear a dança de um desvio de sentido, um homem a quem a natureza reservou com certeza um quarto de delírio por perna, em cada passo que dava, em cada metro que se arrastava, num trajecto coerente mas a abanar o tronco como uma palmeira ao vento.
É uma imagem constrangedora quando um fato se passeia nestas condições.
Não fosse o fato e talvez nem tivesse reparado na forma cambaleante do andar.
O fato como algo que pretende dar evidência a uma imagem de estabilidade em sentido lato, começa realmente a entrar em desuso, mas verdade seja dita, há fatos e fatos…
Mas a estranheza de tal figura inquietou-me, talvez pelo enquadramento desportivo, ou talvez pelo cão que se afastou receoso de quem não chegou a frequentar tais aulas de dança. Tudo se afigurou de modo estranho. O sujeito a cambalear com um ritmo apressado, o cão a desviar-se num quase ganir e eu dentro do carro, a pensar na vida e a escrever este texto, que parece esgotar-se com a qualidade de uma peça de roupa que não tenho por hábito usar.
O cão continua perdido, ás voltas, o homem já nem o vejo, o carro já trabalha e o dia está prestes a anoitecer.

sábado, janeiro 20, 2007

Os pedaços reconstroem-se surgidos do chão, a levitar no ar, em pequenas reflexos brancos que moldam o que de mais há a contornar os corpos e as coisas. Vamos dançando a forma do nome e dando nos formas a estas pequenas partículas etéreas.
Aguardamos respostas no tecto do mundo com o espelhar atento que nos banha os olhos. Agitamos o ar que por sua vez nos agita a nós e nos define o espaço. Este espaço vazio de tudo o que não é história e a origem do solo. Do subsolo. Por onde se transporta tudo o que nos faz sonhar, como o som, o cheiro ou a luz.
Há sempre mais no que não se vê. Nó de cabeça inclinada a olhar a matéria escura. O breu da muralha onde um dia se penduraram pontos de luz como pequenos tesouros na plenitude teísta. Continuamos a dançar, a embainhar os braços, as mãos e os dedos, uns de acordo com os outros, todos de encontro aos outros, sós, em nós, a agitar o que sempre lá esteve e que de nós não precisa, nem nunca precisou, e não precisa de ter noção e não precisa de consciência. Não precisa de saber. Basta estar e fazer-se agitar, e agitar tudo o que nos envolve para nos dar a ver que tipo de dança nos programaram amanhã, quando a beleza não for questionável e o tempo deixar de ser um mistério irresolúvel. Taciturno para uns, madrugador para os outros.
O vento revelar-se-á pelo vento, a luz pela luz, o deserto pela origem e o mar pela sensualidade dos sonhos.
Depois de juntar todas as partículas, apareceste tu e conversámos sobre a forma das mãos, marcámos um novo encontro e despedimo-nos com reencontro marcado para quando formos apenas um doce bálsamo. E não haverá ninguém a quem culpar ou julgar…

sábado, janeiro 06, 2007

Quero começar o ano aqui no blog com uns versos. Desta vez não sei mesmo em que direcção… Não consta que tenhamos de saber não é? Feliz ano novo a todos, aos presos e aos fugitivos.

Amanhã é intento primaveril
Urge a fresta por onde se sopra o nome
Reencaminha-se o soma ao encontro
Outrora outro,
Ruminava de cor
A cor de uma sala qualquer

Argiloso
Nepótico
Outro num país todo

Não finda
Orgulha-se um contraponto comum
Virá um anjo saber
Orquestrar no porto de um sonho só

sábado, dezembro 16, 2006

O tempo anda ventoso, chuvoso, dizem que a lua congelou e a roupa que me cobre aparenta ser a suficiente para enfrentar a intempérie. O Inverno edificou-se uma vez mais. Andamos perdidos na lama, todos a dançar uma música diferente. Como se o som desligado revelasse o agitar dos corpos como um prenúncio de distanciamento. Pois ninguém diz nada. Olhamos o passar do comboio. Uma velha locomotiva a disparar fumo que se aloja nos pulmões dos transeuntes.
Os desejos que costumam recair uns nos outros, de uns para os outros, são revestidos dessa película lamacenta que a pele conseguiu conservar, e andamos todos a sonhar em acordar num mundo de fantasia. Plenos de luz e esperança, especialmente agora na época natalícia. Aqui e ali o nascer de mais uma flor anuncia que não servem apenas para cobrir as campas dos que não estão, mas continuam a ser. O luar continua a iluminar a alma. A nostalgia continua a preencher o vazio e a incredibilidade. Agora que as árvores já não existem, e a raridade de uma flor anuncia que ninguém vai dar pela nossa falta, continuamos a olhar o vazio enquanto alguém chafurda na lama continuando o jogo. Até que uma personagem estranha me convida a participar. Que se lixe! Que posso eu perder mais se agora chafurdar um pouco mais fundo na lama como todos os outros. Afinal, já somos tantos. Somos muitos…
Acabei de olhar para ele e lembrei-me que o seu irmão morrera de amor. Alguns chegam a acreditar que se podia ter libertado, mas eu conhecia-a demasiado bem. O pobre coitado não teve alternativa. Invariavelmente a cruz tornou-se maior que o corpo e acabou por falecer.
Continuo a chafurdar na lama com o melhor fato e a beber um bom champanhe. Sempre gostei de música…
Acabei de me juntar ao circo e agora neva em cima de toda a orquestra. Toda a gente sabe que pertence ao circo de uma maneira ou de outra.
Por aqui, o perfume que se aplica esconde a podridão das rosas. A roupa esconde a falta de um quarto. O rebanho anda à solta pela montanha. Os diamantes são de plástico e as lágrimas de dentro escondem-se num sorriso. A guerra é feita para edificar um muro que não tinha de existir. E sem ter que estar próximo do cume da mais alta das montanhas posso avistar o desespero do formigueiro a chafurdar na lama.
É só uma impressão minha ou anda tudo louco?!
Tudo louco. Dentro de todas as janelas e de todas as portas.

sábado, novembro 18, 2006

Acordei a pensar num concerto de Jazz que vi ontem. Ía comendo e pensando na variação harmónica de algumas coisas que ouvi. Se alguma vez na vida me lembraria de criar coisas assim.
Dei por mim com vontade de remexer no meu passado, que é coisa que confesso, não ter grande fascínio.
Estava à procura de umas partituras antigas quando encontrei um pseudo-poema escrito por mim. Um poema que com certeza gostava de ter visto ser entregue ao destinatário. Na altura não o fiz e agora, para além de não me lembrar a quem se dirigia, tinha um papel exposto ao desgaste do tempo sem ser lido.
Uma vez que continuo sem saber quem tu és, tu, a segunda pessoa do singular, fica aqui o registo no caso de o vires a ler um dia não sabendo que era para ti, e eu sem saber que o vieste ler aqui, a este circunspecto cantinho.
És todos os dias
Um prospecto silêncio
Roubo-te-nos exímio no lado do Deserto
Aqui não há nada
Nada se cria
Nada cresce
Não há plantas nem flores
Tudo cheira ausente
Há muito
Do vazio vazio inconsequente
Não há poesia
Não há talento nem tempo
Cego
Seco
Quente
( )

sexta-feira, novembro 03, 2006

Devem haver milhões de textos a exprimir a sensação de não ter nada para dizer, e de ainda assim, continuamos com a sensação de que algo deve ser dito. Principalmente depois de Beckett, incontornável no que diz respeito a este assunto.
Não ter nada para dizer equivale a não ter rigorosamente nada para dizer, ou, a ter muita coisa dentro de si para ser dita. O fantasma eminente da folha em branco por preencher é uma constante por sabermos que atrás de nós há uma história. Que actua como uma raiz repleta de grandes temas, de grandes obras sobre temas grandiosos, cujo escape, para um jovem escritor, poderá ser sob a orientação de Rilke, a escrita sobre as pequenas coisas, também elas detentoras de poesia em potência, tão grandiosa como o amor, a guerra, ou outro grande tema. Faz sentido, uma vez que está em nós a capacidade de captar e transmitir a poesia que emana das coisas.
Em consequência, o facto de não ter nada para dizer abre uma espécie de suspensão no tempo e no corpo, para que algo venha a ser dito mais tarde. Esta suspensão parece-me essencial para que possamos encontrar o equilíbrio necessário para escrever, para esboçar em palavras a vida de um raciocínio e a lógica de vida que se deixa pousar ao detalhe do registo.
Não ter nada para dizer é uma dobra no discurso que ainda vai ser dito, ou que já está a ser dito enquanto não temos nada para dizer, porque acompanha a forma de estar do corpo, em permanente comunicação, mesmo que parado sem estar aparentemente a fazer nada.
As palavras acabam por beneficiar da fluência do discurso, uma vez que fazer nada, é estar a fazer alguma coisa, que é fazer nada. Não ter nada para dizer, acaba por ser uma forma de dizer qualquer coisa que ainda não encontrou forma para ser dita. Que partilha um silêncio que faz ponte entre dois blocos de som. Um silêncio que só faz sentido por se incluir numa estrutura composta por aquilo a que chamamos som.
Parece-me que a vontade de não ter nada para dizer é sintoma, muitas vezes, de algo que está a ser cogitado para que se possa transmitir com maior transparência.
Tal como Beckett não temos nada para dizer uns aos outros, mas acabamos sempre a falar e a não fechar a boca. Porque temos de falar. Porque temos a necessidade de afirmar, ou perguntar algo que estamos a sentir, ao ponto de se tornar quase uma obrigação, questionável, mas uma obrigação para connosco, de esclarecer e de sermos esclarecidos.
Esta é, sem dúvida, uma estranha forma de comunicação.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Estou num café de bairro, daqueles simples, onde a verdade das coisas se vive e não vai além daquilo que o ego acaba por tomar. A verdade está nas pessoas e não naquilo em que acreditam, ainda que as convicções possam determinar qualquer coisa nas suas vidas.
Por aqui, as conversas que não vão para lá do banal, denunciam o que de mais banal e estúpido tem a nossa vida. De uma maneira ou de outra, a banalidade em cada um de nós, costuma revelar-se no grau de estupidez que temos de deixar sair, soltar, libertar do corpo, como que a expurgar o que de menos interessante encontramos no espelho. Porque a vida é difícil e na verdade, não há nada como um aditivo para a tornar mais interessante. O aditivo é indefinido como tudo o que a vida nos proporciona. Eu escolhi a arte...
Ao ouvir estes homens, porque as suas mulheres têm mais que fazer, penso na monotonia das suas vidas e remeto isso à minha. Como algo que não consigo evitar mas que está presente. Sempre presente. Indissociável ao corpo que me ofereceram, reflexo do local onde vivo e penso as coisas do dia-a-dia.O meio é pobre e assumo que só aqui estou por estar a escrever sobre isso. Vou bebendo a minha bebida. Vou vendo as bebidas dos outros surgir em catadupa. Vou bocejando a minha apatia e ouvindo o que as mulheres dos outros já não têm paciência para ouvir, provavelmente por acreditarem numa coisa maior que um dia os uniu e lhes ofereceu o fruto que um dia a vida há-de colher.
O som das máquinas, do vidro das garrafas no vidro do balcão, têm um ritmo indefinido como tudo o que nos espera. As conversas atropelam-se no ar, as páginas de um jornal fácil vão-se passando sem que os olhos as decifrem ao som de uma conversa ainda menos interessante. Volto a bocejar a apatia da vida. Penso que podia estar a fazer por mim noutro sítio qualquer, noutro sítio qualquer da Europa, onde a densidade populacional é maior, onde a probabilidade de encontrar gente motivada e com menos necessidade de expurgar a estupidez se torna igualmente maior.
Hoje penso nisto, mas não faço nada do que devia estar a fazer. Rigorosamente nada. Porque a palavra que tenho não chega para desembrulhar esta prenda de fim-de-semana. Que ao menos podia estar escrita com mais argúcia que um bocejo a lamentar o facto de aqui estar, num simples café de bairro onde nada mudou. Confirmo, nada mudou, porque hoje não estou para mudar coisa nenhuma. Vou continuar a bocejar e a ver o entusiasmo daquilo que a vida não é, mas que denuncia ser.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Passo por aqui muitas vezes. Estaciono o carro e fico a ver uma árvore, obcecado pela forma, pelo recorte, pela textura. A luz vai mudando com o passar do tempo, e esta pequena árvore, vai tomando o espaço com o seu candeeiro de rua, que a ilumina de a alto a baixo, mostrando que o vento está presente nas pequenas luminescências que ondulam como o brilho da água do mar.
A chuva chegou e vai-lhe devolvendo o verde e a jovialidade que ainda tem. Com a mesma naturalidade com que mudamos de pele. Está assente em frente a uma biblioteca de construção contemporânea, onde os livros, mesmo os mais antigos, são devolvidos ao público com uma cara nova, depois que a arrumação por área de interesse, por cronologia, por tema, por autor, foi disposta numa estante com "ar" a condizer, e assim, esperam eles, que a leitura se torne um pouco mais apelativa.
Os mais novos vão brincando do lado de fora, indiferentes ao estado do tempo, com aquela inocência que oculta o risco de uma virose que outrora já matou. E quem não fez isso em criança? Ou não quis fazer? Belos tempos, esses em que a saúde transbordava e nos dávamos ao luxo de poder apanhar uma valente molha, enquanto corríamos desmedidamente.
A luz ía-se fazendo passar para onde faz falta, e a noite ía chegando devagarinho, sem impedir que a genica de um corpo a esticar, terminasse antes do reconfortante chá quente com torradas a acompanhar depois do banho tomado.
Imóvel mas sem constrangimento, continua esta singularidade da natureza, que afinal se agita com o passar do vento, e que duvido que queira saber das alegrias ou das tristezas das pessoas que são verdadeiramente alheias ao seu grau de sublime.
É reconfortante vir olhá-la para aqui. É reconfortante saber que não lhe devo nada nem ela a mim. Sabemos que sem mim continuará aqui, a ondular com o vento. Eu que sem ela terei de ir buscar reconforto a outro lado, quem sabe, dentro da biblioteca a procurar livros dentro de uma estante bonita e a condizer, sabendo que dos dois alguém vai ter de avançar um gesto, e o mais provável é ser eu, pelo simples facto de gostar de olhar para ti, no silêncio do que rodeia, ao som do que nos liga.
Amanhã, com aprovação ou não, vou voltar aqui.

segunda-feira, outubro 16, 2006

I- O fosso
Há dias em que o engenho interior dispara a fervelhar o vazio. Aquele vazio que virá a ter forma umas horas depois. Uma forma tão definida como aquilo que sabemos dela.
Hoje, para além das coisas que se passeiam e andam a dançar comigo há uns tempos, pensei no fosso. É uma palavra estranha o fosso. Não fosse a fossa ser o seu feminino. Mas naturalmente não é essa a razão da inquietação.
O fosso é uma daquelas recorrências que me vejo a gaguejar de quando em quando. E por norma sobre os mesmos assuntos. Como que a pedir paz ao Senhor, que deixe de me atormentar o cógito com insolências utópicas, tendencialmente de esquerda, com uma preocupação desmesurada pelos outros que nem por eles fazem. Não fossem as bandeiras na altura do futebol e o que seria das eleições... Palermice. É sempre altura de futebol, que mais não seja o clube local, regional, ou lá o que é... mas isto iria desviar a nossa atenção para assuntos que por agora podem descansar, ou ter vida própria fora deste fôlego.
O fosso é, como disse, uma recorrência na minha cabeça. Preocupa-me o crescimento exponencial do fosso entre a Arte, no sentido lato, e o público.
Percebi isso com o livro "A desumanização da arte" de Ortega y Gasset. A leitura já fez uns anos, mas a frenia(1) aqui está, como uma úlcera que atormenta por ser atormentada.
Para sintetizar um pouco as coisas, é referido no livro que a reprodutibilidade técnica com origem na revolução industrial, veio a massificar a produção da imagem a baixo custo. Em consequência disso, a criação artística foi evoluindo, tomando o seu curso natural, e o público em geral, ficou-se pelas reproduções. Para confirmar isto, basta entrar em qualquer restaurante com preços acolhedores, para perceber que também as réplicas de má impressão e de mau gosto, penduradas na parede, por vezes secular, confirmam as palavras escritas pelo autor.
Inquieta-me que o mesmo tenha acontecido com a música e imagino que com tudo o resto. Pior, por um lado veio a calhar, visto que o espaço de reflexão sobre estes assuntos tomou alguma autonomia. Não é que já não a tivesse, mas estava naturalmente mais exposta à opinião geral.
A reprodução foi feita em certas imagens, mas não no domínio geral da imagem. Esses outros, tiveram assim, mais espaço e tempo para desenvolver ideias. Seria pelo menos o que eu faria. Mas a verdade é que a partir dessa altura, o público deixou de sentir a necessidade de acompanhar a produção artística com a mesma regularidade, e a política do escândalo foi-se tornando cada vez mais evidente. Sem esse acompanhamento, parece-me natural que o surgimento de novas teorias em torno da arte fossem entrando no plano do descabido, a planar as ideias e o espírito num ar cada vez mais rarefeito. E a verdade é que para muitos, Picasso, absolutamente incompreendido, ainda é um artista "jovem de última geração". Como todas as coisas que podemos ler numa revista qualquer de moda. Dali, é mais adorado pela performance, que me parece de qualidade, que pela obra pictórica em si, sujeita a uma quantidade avassaladora de reproduções, muitas vezes com o cunho do pintor.
É caricato pensar que para muitos, o pintor é um personagem de boina azul, françês, presumo, com bigode à Dali e a pintar à Pollock, contra uma pequena tela num cavalete frágil, desses que se podem adquirir nas ditas grandes superfícies.
O fosso vai sendo cada vez maior, assim como a quantidade das reproduções, assim como a quantidade de informação com origem desconhecida, assim como a falta de instrução, assim como o poder das minorias nos grandes partidos.
Eu gosto de viajar e ver os originais, gosto de filtrar a informação que me chega, gosto de aprender e gosto de ser livre dentro da medida do possível.
(1) fenda (lat.)